Afinal, houve ou não houve traição? Essa é a pergunta que norteia a trama de Dom Casmurro de Machado de Assis. Todo mundo já ouviu falar de Capitu e seus “olhos de ressaca”, mas pouquíssimas pessoas realmente entendem o verdadeiro significado da trama elaborada pelo grande mestre.
Na escola, quando somos obrigados a ler essa obra magnífica precocemente, as discussões costumam girar em torno da suposta traição e suas supostas evidências. No entanto, Machado era excepcional na arte da manipulação e nós, como mentes adolescentes e imaturas, não “pegamos” a intenção.
Mas antes de esmiuçar a relação intima dos personagens, vamos falar um pouquinho do autor. Certamente nenhum outro escritor tupiniquim foi tão estudado quanto Machado de Assis e, arrisco, nenhum outro tem tantas qualidades para ser um verdadeiro clássico. Ao nascer, Machado não tinha muito a seu favor. Era pobre, negro e gago em uma sociedade que era, no mínimo, cruel e desigual. Aliás, criticas à sociedade da época são frequentes em seus livros.
Alerta de Spoiler
Da mesma forma que Otelo, o famoso personagem de Shakespeare, Bentinho passa a sentir ciumes intensos de Capitu em relação a seu amigo, Escobar. Otelo mata injustamente Desdêmona por culpa da influência de Iago. Em Dom Casmurro ninguém é assassinado, mas podemos perceber muitas influências sobre Bentinho, tanto externas quanto da sua própria personalidade. Aliás, Bentinho se chama Bento Santiago, ele tem o “Iago” em seu próprio nome.
Muito tempo antes de Bentinho confrontar definitivamente Capitu e arruinar o próprio romance, ele nos dá inúmeros indícios de que é mimado e confuso. Ele não consegue ver com clareza a relação entre Capitu e Escobar como não consegue ver com clareza a si mesmo. E quanto à Capitu? Bom, sem maiores definições além daquela feita pelo próprio “marido traído” aos quatorze anos: “Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem”.
Em frente à capacidade de manipulação de Bentinho não temos como afirmar se Capitu o traiu ou não. O narrador sonhava com a vida perfeita e acabou vítima de si mesmo. Ao invés de esmiuçarmos o comportamento de Capitu, devemos prestar atenção nas artimanhas do “Dom Casmurro” para prová-la culpada. Este sim, é suspeito.
Bentinho era advogado e, como tal, propõe: “Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força da repetição”. Ele se torna paranoico e convencido da traição a tal ponto que condena a esposa a um exílio na Suíça e abandona o filho sem nenhum remorso. Na verdade, é Bentinho quem nos trai.
O Verme do Ciúme
Um verme asqueroso e feio / gerado em lodo mortal. / Morde, sangra, rasga e mina. / Aquele verme é o ciúme. Essa é a definição de Machado de Assis, no poema O verme, para o sentimento que corrói as relações amorosas e que perpassa grande parte de sua obra. Sobre a suposta traição de Capitu, Machado nunca se pronunciou. No realismo, como um contraponto ao romantismo onde o casamento é a sacralização de uma entidade burguesa, todo casamento vira um adultério, pois a teoria fútil do romantismo não se aplica a um casal que precisa enfrentar os problemas da vida real.
[…] Não escondo de ninguém minha admiração por Machado de Assis, inclusive já fiz até um texto aqui sobre meu livro favorito de todos os tempos. “Varias Histórias” foi publicado pela […]